Baile Popular - Di Cavalcanti
por Gerivaldo Alves Neiva*
"Ainda tenho forte na parede da memória as marcas da emoção que senti por ocasião dos depoimentos das pessoas que vivem sob proteção do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República – SEDH-PR. Os depoimentos aconteceram durante o IV SEMINÁRIO NACIONAL DO PROGRAMA DE PROTEÇÃO AOS DEFENSORES DOS DIREITOS HUMANOS, no início da tarde de quinta-feira (12/11), em Brasília.
Inicialmente, ouvi o depoimento da mãe de um advogado que foi assassinado por ter denunciado grupos de extermínio; ouvi uma militante do MST que vive sob proteção policial e já teve o tio e um primo assassinados por terem lutado pela terra; ouvi o relato de um militante que está sendo perseguido por ter defendido a população quilombola; ouvi um cacique que está ameaçado de morte por defender a demarcação de uma reserva indígena; ouvi uma freira que também vive sob ameaças por ter optado pelos pobres e ouvi o relato de uma dirigente sindical que também vive sob intensa proteção por ter denunciado a grilagem de terras e crimes de madeireiros. (evito citar os nomes, pois essas pessoas vivem sob proteção).
Em todos esses depoimentos, o Judiciário foi sempre apontado como ineficiente e moroso e os juízes foram apontados como arrogantes, autoritários, tendenciosos e insensíveis à luta dos excluídos e à defesa dos direitos humanos.
O tema central das discussões foi sobre “Um Novo Sistema de Justiça e a Criminalização dos Movimentos Sociais.”
Em seguida aos depoimentos, formou-se uma segunda mesa com representantes do poder público e sociedade civil. O representante da Associação dos Juízes Federais – AJUFE precisou se ausentar antes da formação da mesa. Minha participação – único Juiz na mesa – foi como representante da magistratura estadual, tendo sido indicado pelo Vice-Presidente de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB, Juiz João Ricardo dos Santos Costa (RS), impedido de participar por motivo de compromissos em sua campanha na eleição da AJURIS.
Depois daquele quadro de horror, o que dizer para aquelas pessoas? O que teria para dizer-lhes um Juiz de Direito? Pois bem, deixei de lado algumas anotações mais técnicas sobre o tema e me vali da parábola do grande baile popular nacional:
Certa vez, depois de muita luta e resistência à opressão, um povo resolveu escolher representantes para realização de um grande encontro. Os de cima, depois de fazer com que os de baixo acreditassem que também desejavam a paz e que a violência e a luta sangrenta não faziam parte da cultura daquele povo, cederam em alguns detalhes e aí o grande encontro pode ser realizado.
Para uns, no entanto, a solução por uma grande reunião terminou sendo a solução dos de cima para que tudo continuasse como antes.
O certo é que depois de muitas manifestações dos de baixo – a maioria que terminou sendo representada por uma minoria – os de cima permitiram que alguns direitos dos de baixo ficassem escritos em uma carta e também permitiram que muitos outros direitos ficassem escritos para serem implementados no futuro.
Pronto! Estava feita a travessia. Sem guerra, sem sangue e sem rupturas. Estava mantida a tradição pacífica na solução dos problemas. Os de cima continuaram por cima e os de baixo agora tinham assegurados alguns direitos, mas com boas perspectivas para o futuro. Aliás, nesta carta ficou também escrito que a nova ordem se fundava na cidadania e na dignidade da pessoa humana e que o objetivo de todos era construir uma sociedade livre, justa e solidária.
E agora? Como assegurar isto? Como garantir esses direitos e concretizar esse ambicioso projeto? Quem seria o responsável por qual tarefa? Qual o papel a ser desempenhado pelos novos atores desse teatro, ou melhor, desse grande baile popular nacional?
O certo é que depois de muitas manifestações dos de baixo – a maioria que terminou sendo representada por uma minoria – os de cima permitiram que alguns direitos dos de baixo ficassem escritos em uma carta e também permitiram que muitos outros direitos ficassem escritos para serem implementados no futuro.
Pronto! Estava feita a travessia. Sem guerra, sem sangue e sem rupturas. Estava mantida a tradição pacífica na solução dos problemas. Os de cima continuaram por cima e os de baixo agora tinham assegurados alguns direitos, mas com boas perspectivas para o futuro. Aliás, nesta carta ficou também escrito que a nova ordem se fundava na cidadania e na dignidade da pessoa humana e que o objetivo de todos era construir uma sociedade livre, justa e solidária.
E agora? Como assegurar isto? Como garantir esses direitos e concretizar esse ambicioso projeto? Quem seria o responsável por qual tarefa? Qual o papel a ser desempenhado pelos novos atores desse teatro, ou melhor, desse grande baile popular nacional?
Viram todos, portanto, que ao Poder Judiciário caberia a tarefa de organizar o espaço para a realização do grande baile. Assim, deveria o Poder Judiciário decorar o ambiente, contratar a banda, botar a cerveja para gelar e providenciar os salgados, ou seja, garantir o espaço para a realização do grande projeto constitucional.
Viram todos, também, que aos juízes desse país caberia a missão de recepcionar o povo nesse grande baile, servir a cerveja bem gelada, ser os anfitriões da festa e também dançar com o povo.
Estavam postas, portanto, as condições para a realização de um grande forró nacional, ou seja, a realização do grande projeto constitucional de construção de uma sociedade livre justa e solidária.
Mas os anos foram passando, passando, passando...
Enfim, mais de 20 anos se passaram e o Poder Judiciário ainda não preparou o espaço para o baile, pois anda perdido em discussões sobre eficiência de seus sistemas e sua própria gestão, deixando de lado sua incumbência principal, ou seja, garantir a realização do baile, ou melhor, realizar a Justiça!
Mais de 20 anos se passaram e muitos juízes desse país também não se prepararam para cumprir sua tarefa de recepcionar e servir ao povo. Contrariando ao que lhe foi destinado, preferem ainda o conforto dos concertos de música erudita do que dançar forró com o povo. Alguns solistas tentam realizar seu baile próprio, mas a orquestra não permite notas acima ou destoantes.
Aconteceu, no entanto, que o povo foi se cansando de esperar pelo grande momento e voltou a se manifestar. Agora, o povo está querendo que o Poder Judiciário prepare o local para a festa, ou seja, que garanta o acesso e que promova a Justiça. Querem, também, que os juízes lhes recepcionem, ou seja, façam cumprir o que ficou escrito há mais de 20 anos com relação aos direitos e garantias fundamentais.
Novamente, o conflito é latente e parece que voltamos ao começo ou que nunca houve começo algum. Parece que tudo, de fato, sempre foi como está sendo. De um lado, os de cima querem continuar mantendo seus privilégios e, de outro lado, os de baixo lutando por igualdade.
Em consequência, com saudade dos velhos tempos, o Poder Judiciário se distancia cada vez mais do povo e cria obstáculos - súmulas e jurisprudências - para dificultar o acesso dos de baixo à Justiça. Muitos juízes, de sua vez, esquecem que sua tarefa é servir e, também saudosos dos velhos tempos, passam a exercer o papel de porteiros e seguranças da festa, que é o de não permitir que o povo estrague o concerto de música erudita e se lambuze com pratos requintados e guloseimas sofisticadas.
Sendo assim, a luta do povo por terra, casa, pão, liberdade, emprego, salário, saúde, educação e lazer agora perturba a paz social, compromete a segurança jurídica e se tornou crime que precisa de punição cada vez mais severa. O povo voltou a ser o inimigo a ser combatido e excluído. É assim mesmo. A história dos de cima necessita sempre de inimigos. Um dia foram os hereges, depois as bruxas, depois os homossexuais, depois os “bandidos”, depois os sem-terra... Sempre haverá inimigos!
Nesta lógica perversa, lutar pela realização do baile prometido, ou seja, lutar pela concretização do projeto constitucional se tornou sinônimo de crime. Assim, quem faz isso é criminoso e as associações que promovem e alimentam este sonho devem ser criminalizadas.
Portanto, na lógica dos de cima, índios, negros, posseiros, prostitutas, bruxas, hereges, homossexuais e todas as demais minorias excluídas em mais de 500 anos de história, devem retornar ao seu lugar do lado de fora do concerto erudito. Só que se esqueceram de perguntar se eles querem continuar sendo pobres, discriminados e excluídos...
Pois bem, é assim que entendo o momento que vivemos com relação ao que se passa atualmente no Poder Judiciário, que se pensa empresa a ser bem gerida para produzir e cumprir metas. Da mesma forma, penso que o ensino jurídico continua formando profissionais que pensam que o Direito se confunde com a Lei e, portanto, continua produzindo mantenedores da ordem antiga e desconhecedores do processo histórico.
Ora, sendo assim, as mesmas tarefas de mais de 20 anos ainda estão postas, ou seja, temos ainda que providenciar o local da festa, contratar a banda, os garçons, a cerveja e os salgados para realizar o nosso grande baile. A dúvida que permanece é se o Poder Judiciário tem, de fato, interesse na realização deste baile, se Juiz admite servir e se o ensino jurídico admite mudanças?
Pensando bem, eu não tenho dúvida alguma. A questão, a meu ver, não é de simples "interesse", mas entender que não se constrói uma casa pelo telhado e nem se transforma uma sociedade sem destruir suas antigas estruturas.
E assim vamos seguindo, pois outro caminho não nos resta, mesmo que uns não queiram e digam que estamos cometendo o crime de alimentar a utopia de construir uma sociedade livre, justa e solidária."
Conceição do Coité, 13 de novembro de 2009
* Juiz de Direito em Conceição do Coité – Ba.
* Juiz de Direito em Conceição do Coité – Ba.
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