XaD CAMOMILA

15 de outubro de 2014

Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania (Ed. Unesp, 2014)

Pesquisa afasta mitos e preconceitos contra Bolsa Família

De 150 entrevistadas, só duas largaram emprego depois de receber o BF; eram vítimas de exploração, com salários 1/3 do mínimo

MARCELO SEMER (juiz de direito em São Paulo e escritor)

Mais um segundo turno entre PT e PSDB e o Bolsa Família tem tudo para ingressar de corpo e alma na discussão eleitoral.

O eleitorado antipetista detona a transferência de renda e o aponta, sem meias palavras, como “estímulo à vagabundagem”.

De outro lado, governistas afirmam que o instrumento foi decisivo para a exclusão do país do Mapa da Fome e a retirada de milhões de brasileiros da pobreza extrema.

Walquíria Leão Rego e Alessandro Pinzani, pesquisadores da Unicamp e UFSC, publicaram recentemente o livro Vozes do Bolsa Família - autonomia, dinheiro e cidadania (Ed. Unesp, 2014), onde lançam luzes sobre um debate que costuma ser contaminado por mitos e, sobretudo, preconceitos. 

O trabalho de pesquisa por eles realizado é extremamente valioso, envolvendo cinco anos de entrevistas com beneficiárias do programa, enfocando na ação do BF para a redução da pobreza e o ganho de autonomia das mulheres. 

Vale a pena conhecê-lo, antes de proferir impropérios, calcados basicamente no desconhecimento da situação de suas beneficiárias –antes e depois do Bolsa Família- e do ambiente econômico em que circundam. 

O primeiro mito que se desfaz, ao ler o trabalho, é justamente o do “estímulo à vagabundagem”. 

Das 150 mulheres entrevistadas pelos pesquisadores, apenas duas deixaram de trabalhar com o recebimento da bolsa. Mas aí foi menos preguiça que exploração: ambas trabalhavam como domésticas e ganhavam cerca de 1/3 do salário mínimo, por seis dias de trabalho semanais.

O trabalho em condições precaríssimas, muitas vezes análogas à escravidão, aliás, é o que mais os pesquisadores encontraram. 

Outra entrevistada, que decidiu não largar seus três dias de faxina por semana, informou receber menos de 9 reais por oito horas na casa de família. 

Aqueles que conseguem bicos na colheita do feijão, ocupação que se dá apenas nas safras, levam não mais que 10 reais por oito ou mais horas de trabalho exaustivo.

Mas nenhum desses pareceu menos cansativo que o das mulheres alagoanas que completam o orçamento pescando pequenos mariscos chamados maçunins:

“Quando eu chego do mar, eu chego toda quebrada. Não aguento mais não. Tem que ficar assim acocorado, o tempo todinho, até encher o balde, um balde grande, de costas, quando chego estou com isso daqui [aponta para sua coluna vertebral], a coluna não aguenta. Hoje eu tive que cavar, tive que molhar e cheguei aqui com tanto frio que não aguentei a coluna”  - diz o relato da mulher que, ao final, vende os maçunins (que guarda dentro do sutiã, para que o mar não o leve de volta) a, no máximo, dez reais o quilo.

Pela fragilidade da atividade empresarial nos grotões e o clima cruel para atividades agrícolas, o maior sonho de todos os beneficiários do programa é justamente um emprego fixo. O auxílio, todavia, ainda que pequeno (a maior parte das famílias recebe pouco mais de cem reais) tem ajudado a interromper a saga de retirantes que superpovoam as favelas dos grandes centros urbanos. 

Outro mito é a falta de contrapartida. 

A matrícula escolar dos filhos é obrigatória. Parte considerável das famílias beneficiárias, aliás, gasta parcela do benefício com material escolar para os filhos.

Fazendo visitas em anos distintos os pesquisadores puderam notar, em regra, as diferenças no padrão das famílias atendidas, como um sofá no casebre que vivia antes sem mobília, roupas nas crianças ou uma televisão.

A descrição das casas visitadas, aliás, foi um dos relatos mais impactantes. Numa delas, a mãe vivia em constante medo, “de que as crianças caíssem no buraco usado para fazer as suas necessidades”.

Ponto importante da pesquisa foi demonstrar que além das famílias beneficiárias, o pequeno comércio local também se saiu muito estimulado pela Bolsa Família –o mercado de “pobre para pobre”. 

Pequenas vendas e empresas familiares foram se desenvolvendo nas regiões, também beneficiadas com o aumento do salário mínimo e dos proventos de aposentadoria.

Uma das beneficiárias contou alegremente que, com o valor do BF passou a poder comprar “macarrão de pacote” -até então comprava o alimento a granel, em quantidades menores. 

O cartão passou a significar também crédito nas vendas e a consequente elevação de autoestima.

Outro mito é de que as mulheres têm filhos para aumentar o rendimento que o benefício provoca. 

O aumento do benefício é claramente insuficiente para sustentar uma nova criança. Constatou-se, aliás, que com pouco acesso aos equipamentos de saúde, as mulheres comemoravam enormemente quando conseguiam aligação das trompas, que as impedia de ter novos filhos.

O ponto central da pesquisa foi exatamente o ganho de autonomia das mulheres, em famílias tradicionalmente patriarcais. 

Isso ocorreu porque os cartões foram confiados às suas mãos. A maioria delas entendeu que tinham melhores condições de cuidar das compras da casa (ao invés de gastos desnecessários dos maridos), mas isso também significou maior possibilidade de interromper ciclos de violência doméstica. Em alguns lugares, aumentaram as separações.

Os pesquisadores concordam que o Bolsa Família é um instrumento insuficiente para debelar a pobreza. Mas reconhecem que ele tem servido para salvar vidas em situações de altíssima vulnerabilidade –só o recebem famílias que têm renda per capita igual ou inferior a 70 reais. 

As mulheres já começam a entender que o benefício é um direito, não apenas um favor e não foram poucas situações em que os pesquisadores localizaram comunidades que o discutiam coletivamente.

O Bolsa Família concretiza alguns princípios que, inscritos na Constituição, costumam parecer letras mortas, como o primado da dignidade humana, a obrigação de erradicar a pobreza e de reduzir as desigualdades. É bom lembrar que, antes de políticas partidárias, esses comandos são exigências constitucionais.

Mas o fato é que o Estado brasileiro se acostumou a dar mais para quem menos precisa. Está inundado de incentivos fiscais a empresas, comodatos de áreas públicas a clubes ricos, auxílios diversos a servidores graduados. 

Quando o benefício reverte para a mais frágil camada da sociedade, no entanto, por menos que represente, é instrumento de ódio, rancor e profundo preconceito.

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