Pesquisa afasta mitos e preconceitos contra Bolsa Família

MARCELO SEMER (juiz de direito em São Paulo e escritor)
Mais um segundo turno entre PT e PSDB e o Bolsa Família tem tudo para ingressar de corpo e alma na discussão eleitoral.
O eleitorado antipetista detona a
transferência de renda e o aponta, sem meias palavras, como “estímulo à
vagabundagem”.
De outro lado, governistas
afirmam que o instrumento foi decisivo para a exclusão do país do Mapa da Fome
e a retirada de milhões de brasileiros da pobreza extrema.
Walquíria Leão Rego e Alessandro
Pinzani, pesquisadores da Unicamp e UFSC, publicaram recentemente o livro Vozes
do Bolsa Família - autonomia, dinheiro e cidadania (Ed. Unesp, 2014), onde
lançam luzes sobre um debate que costuma ser contaminado por mitos e,
sobretudo, preconceitos.
O trabalho de pesquisa por eles
realizado é extremamente valioso, envolvendo cinco anos de entrevistas com
beneficiárias do programa, enfocando na ação do BF para a redução da pobreza e
o ganho de autonomia das mulheres.
Vale a pena conhecê-lo, antes de
proferir impropérios, calcados basicamente no desconhecimento da situação de
suas beneficiárias –antes e depois do Bolsa Família- e do ambiente econômico em
que circundam.
O primeiro mito que se desfaz, ao
ler o trabalho, é justamente o do “estímulo à vagabundagem”.
Das 150 mulheres entrevistadas
pelos pesquisadores, apenas duas deixaram de trabalhar com o recebimento da
bolsa. Mas aí foi menos preguiça que exploração: ambas trabalhavam como
domésticas e ganhavam cerca de 1/3 do salário mínimo, por seis dias de trabalho
semanais.
O trabalho em condições
precaríssimas, muitas vezes análogas à escravidão, aliás, é o que mais os
pesquisadores encontraram.
Outra entrevistada, que decidiu
não largar seus três dias de faxina por semana, informou receber menos de 9
reais por oito horas na casa de família.
Aqueles que conseguem bicos na
colheita do feijão, ocupação que se dá apenas nas safras, levam não mais que 10
reais por oito ou mais horas de trabalho exaustivo.
Mas nenhum desses pareceu menos
cansativo que o das mulheres alagoanas que completam o orçamento pescando
pequenos mariscos chamados maçunins:
“Quando eu chego do mar, eu chego
toda quebrada. Não aguento mais não. Tem que ficar assim acocorado, o tempo
todinho, até encher o balde, um balde grande, de costas, quando chego estou com
isso daqui [aponta para sua coluna vertebral], a coluna não aguenta. Hoje eu
tive que cavar, tive que molhar e cheguei aqui com tanto frio que não aguentei
a coluna” - diz o relato da mulher que, ao final, vende os maçunins (que
guarda dentro do sutiã, para que o mar não o leve de volta) a, no máximo, dez
reais o quilo.
Pela fragilidade da atividade
empresarial nos grotões e o clima cruel para atividades agrícolas, o maior
sonho de todos os beneficiários do programa é justamente um emprego fixo. O
auxílio, todavia, ainda que pequeno (a maior parte das famílias recebe pouco
mais de cem reais) tem ajudado a interromper a saga de retirantes que
superpovoam as favelas dos grandes centros urbanos.
Outro mito é a falta de
contrapartida.
A matrícula escolar dos filhos é
obrigatória. Parte considerável das famílias beneficiárias, aliás, gasta
parcela do benefício com material escolar para os filhos.
Fazendo visitas em anos distintos
os pesquisadores puderam notar, em regra, as diferenças no padrão das famílias
atendidas, como um sofá no casebre que vivia antes sem mobília, roupas nas
crianças ou uma televisão.
A descrição das casas visitadas,
aliás, foi um dos relatos mais impactantes. Numa delas, a mãe vivia em
constante medo, “de que as crianças caíssem no buraco usado para fazer as suas
necessidades”.
Ponto importante da pesquisa foi
demonstrar que além das famílias beneficiárias, o pequeno comércio local também
se saiu muito estimulado pela Bolsa Família –o mercado de “pobre para
pobre”.
Pequenas vendas e empresas
familiares foram se desenvolvendo nas regiões, também beneficiadas com o
aumento do salário mínimo e dos proventos de aposentadoria.
Uma das beneficiárias contou
alegremente que, com o valor do BF passou a poder comprar “macarrão de pacote”
-até então comprava o alimento a granel, em quantidades menores.
O cartão passou a significar
também crédito nas vendas e a consequente elevação de autoestima.
Outro mito é de que as mulheres
têm filhos para aumentar o rendimento que o benefício provoca.
O aumento do benefício é
claramente insuficiente para sustentar uma nova criança. Constatou-se, aliás,
que com pouco acesso aos equipamentos de saúde, as mulheres comemoravam
enormemente quando conseguiam aligação das trompas, que as impedia de ter novos
filhos.
O ponto central da pesquisa foi
exatamente o ganho de autonomia das mulheres, em famílias tradicionalmente
patriarcais.
Isso ocorreu porque os cartões
foram confiados às suas mãos. A maioria delas entendeu que tinham melhores
condições de cuidar das compras da casa (ao invés de gastos desnecessários dos
maridos), mas isso também significou maior possibilidade de interromper ciclos
de violência doméstica. Em alguns lugares, aumentaram as separações.
Os pesquisadores concordam que o
Bolsa Família é um instrumento insuficiente para debelar a pobreza. Mas
reconhecem que ele tem servido para salvar vidas em situações de altíssima vulnerabilidade
–só o recebem famílias que têm renda per capita igual ou inferior a 70
reais.
As mulheres já começam a entender
que o benefício é um direito, não apenas um favor e não foram poucas situações
em que os pesquisadores localizaram comunidades que o discutiam coletivamente.
O Bolsa Família concretiza alguns
princípios que, inscritos na Constituição, costumam parecer letras mortas, como
o primado da dignidade humana, a obrigação de erradicar a pobreza e de reduzir
as desigualdades. É bom lembrar que, antes de políticas partidárias, esses
comandos são exigências constitucionais.
Mas o fato é que o Estado
brasileiro se acostumou a dar mais para quem menos precisa. Está inundado de
incentivos fiscais a empresas, comodatos de áreas públicas a clubes ricos,
auxílios diversos a servidores graduados.
Quando o benefício reverte para a
mais frágil camada da sociedade, no entanto, por menos que represente, é
instrumento de ódio, rancor e profundo preconceito.
Nenhum comentário :
Postar um comentário