Por Gerivaldo Alves Neiva *
"Depois de uma tarde de audiências, quase todas em ações de defesa do consumidor, retornei para casa cansado e com vontade de não fazer mais nada o resto do dia. Antes de começar a fazer nada, no entanto, abri a janela do gabinete para deixar entrar a luz tênue do final de tarde abafado e também para deixar entrar aquela brisa quase fria que sopra do sudeste nesta época do ano.
Além de querer a luz e a brisa da tarde, estou também me preparando para observar a maravilha que vai ser o surgimento da lua cheia em poucas horas. Neste aspecto, sou um privilegiado. Minha casa fica voltada para o leste e a lua cheia nasce bem na minha janela. Ver surgir a lua cheia, às vezes parecendo uma grande bola de fogo, é uma sensação indescritível.
Voltando às audiências de defesa do consumidor, quase todas envolvendo correntistas e bancos, causou-me indignação a situação de um rapaz, funcionário público estadual, que se endividou tanto através de CDCs e renegociações que estava à beira da insolvência, stress, depressão e desespero de vida. O que era um crédito para equilibrar as finanças em um mês de imprevistos, terminou se transformando em um pesadelo para o rapaz. Agora, simplesmente, não tinha mais como pagar a dívida cobrada pelo banco.
Tentei de todas as formas fazer um acordo, mas o preposto do banco, apesar de se mostrar compreensivo com a situação, seguia à risca as orientações do patrão e recusou as propostas que lhe apresentei. Ao final, não proferi a sentença e determinei que a secretaria do Juizado elaborasse um cálculo dos valores financiados, taxas e encargos que estavam sendo pagos pelo rapaz. Não tinha dúvidas de que estava havendo abuso por parte do banco e, certamente, vou julgar procedente a ação para determinar a revisão da taxa de juros e de algumas cláusulas nos aditivos de renegociação da dívida.
Deixando as audiências de lado, a proposta agora é desligar mesmo...
Aliás, como é bom trabalhar, ficar cansado, retornar para a tranqüilidade da casa e apagar da mente os problemas da sala de audiências... Estava quase conseguindo a última parte desta proposta quando vi Nick, o gato, todo esticado e quase de barriga no chão, espreitando alguma coisa. Nick ainda era um filhote, feio e magro, quando apareceu no portão de minha casa. Depois de alguns mimos e, principalmente, uma boa comidinha, Nick não foi mais embora e foi ficando por aqui até se transformar em um belo gato.
Pois bem, em um piscar de olhos, Nick deu um salto e caiu firme com uma lagartixa na boca. A herança caçadora dos felinos selvagens se fez presente e com eficiência. A princípio, fiquei com pena da pobre lagartixa, mas depois pensei que na natureza é assim mesmo. Uns são presas e outros caçadores. Ora, gatos são domésticos, mas tem parentescos com os animais silvestres e gostam de caçar. Não conheço sobre a família das lagartixas, mas sei que vivem tomando banho de sol nos telhados e se alimentando de insetos. Estes, de sua vez, vivem da seiva das plantas, pólen e frutas. É a ordem estabelecida no caos.
Nick não comeu logo a lagartixa e começou uma brincadeira sádica com o pobre lagarto. Dava uma mordidela e soltava. A lagartixa tentava correr, mas era logo apanhada. Depois, fazia-se de morta para tentar enganar o velho Nick, mas era tudo simulação. Pensando que o gato acreditava em sua morte, a lagartixa tentava mais uma vez correr e era facilmente apanhada. Enquanto Nick brincava, a pobre lagartixa tentava salvar sua vida. O gato nem comia e nem matava logo a lagartixa. Seu prazer era mantê-la viva para sua diversão. O agora poderoso Nick se divertia à custa do desespero de sua presa.
Não demorou muito e lá estava novamente a cena da audiência na minha cabeça. A diferença é que agora a história do rapaz endividado se misturava com a brincadeira de Nick. Lutando de todas as formas pela sobrevivência, o pobre rapaz da audiência era a lagartixa dominada pelo gato Nick, ou seja, pelo poderoso e impiedoso banco. Tal qual o gato, o banco também não queria comer logo sua presa, mas tirar dela o máximo de dinheiro possível. A diferença fundamental é que Nick queria apenas diversão e aprimorar seu instinto de caçador, mas o banco queria dinheiro, dinheiro e mais dinheiro.
Eu bem que poderia intervir na brincadeira de Nick e salvar a lagartixa, mas na natureza é assim mesmo: uns são caça e outros caçadores, presas e predadores... Deixa o Nick se divertir em paz. A lagartixa também já deve ter comido muitos insetos indefesos. Sim, e na “brincadeira” do banco com o correntista, o juiz pode intervir?
Penso que pode e deve. Já foi o tempo, aliás, em que prevalecia um brocardo latino que diz “pacta sunt servanda”, ou seja, os pactos devem ser respeitados. Outros dogmáticos mais afoitos diziam assim: “o contrato é lei entre as partes”. Ora, sendo assim, uma vez assinado o contrato, as partes deveriam obedecer as cláusulas estabelecidas e o Juiz não poderia se intrometer naquela relação essencialmente privada.
Os tempos são outros. Agora, está escrito na Constituição Federal de 1988, ficando apenas no capítulo da Ordem Econômica e Financeira, que os princípios gerais da atividade econômica são fundados na “valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e tem por fim assegurar a todos uma “existência digna”, conforme os ditames da justiça social, tendo como princípios, dentre outros, a “função social da propriedade, a defesa do consumidor, a redução as desigualdades e a busca do pleno emprego”. (art. 170, CF).
O Código Civil de 2002, de sua vez, estabelece que “a liberdade de contratar será exercida nos limites da função social do contrato” e, além disso, “que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.” (arts. 421 e 422).
Não bastasse isso, o mesmo Código Civil de 2002 estabelece que “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.” (art. 2.035, parágrafo único).
Por fim, o Código de Defesa do Consumidor reconhece a “vulnerabilidade do consumidor” no mercado de consumo e a possibilidade de “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.” (arts. 4º, I e 6º, V, do CDC). De forma mais incisiva, o mesmo Código de Defesa do Consumidor veda ao fornecedor de produtos ou serviços que se “prevaleça da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhes seus produtos ou serviços”, bem como “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.” (art. 39, IV, do CDC).
Sendo assim, não defendo que um ser humano intervenha na lógica da natureza para evitar que um gato coma uma lagartixa, mas é imperioso, com base na própria lei, que o Juiz intervenha em uma relação contratual para reequilibrá-la em consonância com a nova principiologia constitucional, civilista e consumerista.
Esta permissão, aliás, está prevista também no Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido, o artigo 51 do CDC define que “são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.” Ora, se as cláusulas que violam estes princípios são “nulas de pleno direito”, o Juiz pode reconhecer e declarar esta nulidade como ato de seu ofício.
Não entendo, por fim, por que alguns ainda teimam em se esconder atrás de leis antigas e de velhos brocardos latinos, permitindo que os bancos façam com seus clientes o mesmo que o gato Nick fez com a lagartixa: pega, morde, brinca, machuca e, por fim, come a bichinha e ainda lambe os “beiços”.
Bom, no final da brincadeira, Nick “jantou” sua lagartixa e eu vou dar uma navegada sem rumo pela Internet enquanto a lua cheia não aparece em minha janela. Depois, preciso pensar em uma forma de evitar que o banco também “jante” o rapaz da audiência."
Conceição do Coité, 19 de maio de 2010
* Juiz de Direito
Gerivaldo Neiva - Juiz de Direito: Para os bancos, consumidor é lagartixa
"Depois de uma tarde de audiências, quase todas em ações de defesa do consumidor, retornei para casa cansado e com vontade de não fazer mais nada o resto do dia. Antes de começar a fazer nada, no entanto, abri a janela do gabinete para deixar entrar a luz tênue do final de tarde abafado e também para deixar entrar aquela brisa quase fria que sopra do sudeste nesta época do ano.
Além de querer a luz e a brisa da tarde, estou também me preparando para observar a maravilha que vai ser o surgimento da lua cheia em poucas horas. Neste aspecto, sou um privilegiado. Minha casa fica voltada para o leste e a lua cheia nasce bem na minha janela. Ver surgir a lua cheia, às vezes parecendo uma grande bola de fogo, é uma sensação indescritível.
Voltando às audiências de defesa do consumidor, quase todas envolvendo correntistas e bancos, causou-me indignação a situação de um rapaz, funcionário público estadual, que se endividou tanto através de CDCs e renegociações que estava à beira da insolvência, stress, depressão e desespero de vida. O que era um crédito para equilibrar as finanças em um mês de imprevistos, terminou se transformando em um pesadelo para o rapaz. Agora, simplesmente, não tinha mais como pagar a dívida cobrada pelo banco.
Tentei de todas as formas fazer um acordo, mas o preposto do banco, apesar de se mostrar compreensivo com a situação, seguia à risca as orientações do patrão e recusou as propostas que lhe apresentei. Ao final, não proferi a sentença e determinei que a secretaria do Juizado elaborasse um cálculo dos valores financiados, taxas e encargos que estavam sendo pagos pelo rapaz. Não tinha dúvidas de que estava havendo abuso por parte do banco e, certamente, vou julgar procedente a ação para determinar a revisão da taxa de juros e de algumas cláusulas nos aditivos de renegociação da dívida.
Deixando as audiências de lado, a proposta agora é desligar mesmo...
Aliás, como é bom trabalhar, ficar cansado, retornar para a tranqüilidade da casa e apagar da mente os problemas da sala de audiências... Estava quase conseguindo a última parte desta proposta quando vi Nick, o gato, todo esticado e quase de barriga no chão, espreitando alguma coisa. Nick ainda era um filhote, feio e magro, quando apareceu no portão de minha casa. Depois de alguns mimos e, principalmente, uma boa comidinha, Nick não foi mais embora e foi ficando por aqui até se transformar em um belo gato.
Pois bem, em um piscar de olhos, Nick deu um salto e caiu firme com uma lagartixa na boca. A herança caçadora dos felinos selvagens se fez presente e com eficiência. A princípio, fiquei com pena da pobre lagartixa, mas depois pensei que na natureza é assim mesmo. Uns são presas e outros caçadores. Ora, gatos são domésticos, mas tem parentescos com os animais silvestres e gostam de caçar. Não conheço sobre a família das lagartixas, mas sei que vivem tomando banho de sol nos telhados e se alimentando de insetos. Estes, de sua vez, vivem da seiva das plantas, pólen e frutas. É a ordem estabelecida no caos.
Nick não comeu logo a lagartixa e começou uma brincadeira sádica com o pobre lagarto. Dava uma mordidela e soltava. A lagartixa tentava correr, mas era logo apanhada. Depois, fazia-se de morta para tentar enganar o velho Nick, mas era tudo simulação. Pensando que o gato acreditava em sua morte, a lagartixa tentava mais uma vez correr e era facilmente apanhada. Enquanto Nick brincava, a pobre lagartixa tentava salvar sua vida. O gato nem comia e nem matava logo a lagartixa. Seu prazer era mantê-la viva para sua diversão. O agora poderoso Nick se divertia à custa do desespero de sua presa.
Não demorou muito e lá estava novamente a cena da audiência na minha cabeça. A diferença é que agora a história do rapaz endividado se misturava com a brincadeira de Nick. Lutando de todas as formas pela sobrevivência, o pobre rapaz da audiência era a lagartixa dominada pelo gato Nick, ou seja, pelo poderoso e impiedoso banco. Tal qual o gato, o banco também não queria comer logo sua presa, mas tirar dela o máximo de dinheiro possível. A diferença fundamental é que Nick queria apenas diversão e aprimorar seu instinto de caçador, mas o banco queria dinheiro, dinheiro e mais dinheiro.
Eu bem que poderia intervir na brincadeira de Nick e salvar a lagartixa, mas na natureza é assim mesmo: uns são caça e outros caçadores, presas e predadores... Deixa o Nick se divertir em paz. A lagartixa também já deve ter comido muitos insetos indefesos. Sim, e na “brincadeira” do banco com o correntista, o juiz pode intervir?
Penso que pode e deve. Já foi o tempo, aliás, em que prevalecia um brocardo latino que diz “pacta sunt servanda”, ou seja, os pactos devem ser respeitados. Outros dogmáticos mais afoitos diziam assim: “o contrato é lei entre as partes”. Ora, sendo assim, uma vez assinado o contrato, as partes deveriam obedecer as cláusulas estabelecidas e o Juiz não poderia se intrometer naquela relação essencialmente privada.
Os tempos são outros. Agora, está escrito na Constituição Federal de 1988, ficando apenas no capítulo da Ordem Econômica e Financeira, que os princípios gerais da atividade econômica são fundados na “valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e tem por fim assegurar a todos uma “existência digna”, conforme os ditames da justiça social, tendo como princípios, dentre outros, a “função social da propriedade, a defesa do consumidor, a redução as desigualdades e a busca do pleno emprego”. (art. 170, CF).
O Código Civil de 2002, de sua vez, estabelece que “a liberdade de contratar será exercida nos limites da função social do contrato” e, além disso, “que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.” (arts. 421 e 422).
Não bastasse isso, o mesmo Código Civil de 2002 estabelece que “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.” (art. 2.035, parágrafo único).
Por fim, o Código de Defesa do Consumidor reconhece a “vulnerabilidade do consumidor” no mercado de consumo e a possibilidade de “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.” (arts. 4º, I e 6º, V, do CDC). De forma mais incisiva, o mesmo Código de Defesa do Consumidor veda ao fornecedor de produtos ou serviços que se “prevaleça da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhes seus produtos ou serviços”, bem como “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.” (art. 39, IV, do CDC).
Sendo assim, não defendo que um ser humano intervenha na lógica da natureza para evitar que um gato coma uma lagartixa, mas é imperioso, com base na própria lei, que o Juiz intervenha em uma relação contratual para reequilibrá-la em consonância com a nova principiologia constitucional, civilista e consumerista.
Esta permissão, aliás, está prevista também no Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido, o artigo 51 do CDC define que “são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.” Ora, se as cláusulas que violam estes princípios são “nulas de pleno direito”, o Juiz pode reconhecer e declarar esta nulidade como ato de seu ofício.
Não entendo, por fim, por que alguns ainda teimam em se esconder atrás de leis antigas e de velhos brocardos latinos, permitindo que os bancos façam com seus clientes o mesmo que o gato Nick fez com a lagartixa: pega, morde, brinca, machuca e, por fim, come a bichinha e ainda lambe os “beiços”.
Bom, no final da brincadeira, Nick “jantou” sua lagartixa e eu vou dar uma navegada sem rumo pela Internet enquanto a lua cheia não aparece em minha janela. Depois, preciso pensar em uma forma de evitar que o banco também “jante” o rapaz da audiência."
Conceição do Coité, 19 de maio de 2010
* Juiz de Direito
Gerivaldo Neiva - Juiz de Direito: Para os bancos, consumidor é lagartixa