O juiz considera-se uma autoridade competente para dizer a verdade dos fatos que estão em um processo, mas não se sente um prestador de serviço. Não se interessa se está resolvendo problema social ou não, se está produzindo custo social, se está afetando vidas de forma definitiva. Confunde prestar justiça e fazer justiça. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), da semana passada, que validou o poder de investigação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi um golpe nessa mentalidade, mas ainda está longe de representar uma vitória definitiva sobre o corporativismo.
A avaliação é da professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Luciana Gross Cunha. Coordenadora da pesquisa de avaliação da imagem do Judiciário conduzida pela FGV-SP há 3 anos, Luciana diz que só a democratização do Poder é capaz de reverter a curva descendente do prestígio da instituição. A seguir, trechos da entrevista ao jornal Valor Econômico:
Valor: O julgamento do Supremo sobre os limites da atuação do CNJ teve um placar apertado. Qual a avaliação da senhora?
Luciana Gross : O julgamento mostra bem o dilema que existe no STF: de um lado, o forte corporativismo; do outro, a institucionalização de controles democráticos. Alguns ministros veem como afronta [o poder de investigação do CNJ], em uma postura corporativa. Outros veem como uma questão natural da própria democracia. O corporativismo vem desde a educação do bacharel em direito. A Constituição, quando foi reformada em 2004, deu ao CNJ poder de investigação e de alteração de decisões judiciais. Por que determinadas instituições não passavam por controle? Por que não são transparentes? No caso do Judiciário, isso é ainda mais delicado, porque é um poder que não passa pelo controle regular democrático que são as eleições.
Valor: Ministros alegaram que a possibilidade de o CNJ investigar juízes seria como um "cheque em branco. A senhora concorda?
Luciana : Isso é uma falácia. Estão sugerindo que CNJ é um órgão irresponsável. Não é verdade que as decisões são aleatórias e que as investigações não são fundamentadas. Qualquer procedimento, seja administrativo ou judicial, que se instaure, tem de ter uma razão. Esse argumento mostra a face mais corporativa. Quer dizer que "só nós, juízes, somos capazes de instaurar processos contra nós mesmos", "só nós temos capacidade e competência".
Valor: O corporativismo foi derrotado com essa decisão do STF?
Luciana : Acho que perdeu uma batalha, mas não perdeu a guerra ainda. Não é de uma hora para a outra que muda essa cultura. É mudança lenta, que passa até mesmo por qual é o papel do juiz na nossa sociedade. As escolas de magistratura não cumprem seu papel de indicar para o juiz qual é a principal função dele na sociedade como um todo, não só seu papel corporativista.
Valor: Nos últimos anos o índice de confiança da população no Judiciário só caiu. A decisão do STF, de mais transparência, pode ajudar a mudar isso?
Luciana: A queda se dá principalmente pela indisposição das pessoas em irem para a Justiça. A avaliação do Judiciário sempre foi ruim, principalmente por questões ligadas a custos e morosidade. As pessoas têm cada vez menos vontade de levar os seus conflitos para o Judiciário. Em torno de 68% da população considera o Judiciário pouco honesto ou desonesto. Isso afeta a legitimidade do Poder. A publicação de casos de corrupção envolvendo juízes leva a essa maior descrença. A percepção sobre o Judiciário, no entanto, é melhor nos Estados onde o processo dura menos e é mais transparente.
Valor: O que está no cerne da atual crise do Judiciário?
Luciana: A crise do Judiciário é uma crise de gestão. Os tribunais são mal geridos, não têm plano de trabalho, não elaboram política pública, não sabem o que fazem. O juiz não se vê como prestador de serviço. Ele acha que é uma autoridade competente para dizer a verdade dos fatos que estão no processo. Não interessa se está resolvendo problema social ou não, se está produzindo custo social, se está afetando vidas de forma definitiva, não se sente prestador de serviços públicos. Confundem prestar justiça e fazer justiça. Os juízes acham que fazem justiça, mas quando a decisão envolve outros órgãos públicos, envolve pessoas, custos econômicos, diversas outras questões. Enquanto o juiz, o Judiciário não se perceber como prestador de serviço público não vai resolver problemas.
Valor: Que avanços que a senhora vê desde a criação do CNJ?
Luciana: Algumas decisões do CNJ são emblemáticas. A primeira delas foi exigir publicidade no processo de promoção dentro dos tribunais, que tem de ser pública. As sessões públicas criaram constrangimentos e apareceram diversas fraudes. A outra foi o combate ao nepotismo. À medida que se abriu a caixa preta dos cargos em provimento apareceram as nomeações por nepotismo. A terceira grande atuação do CNJ, em termos de transparência, foi a publicação de relatórios que trazem o volume dos trabalhos do tribunal, a forma como é gasto o dinheiro e os investimentos em infraestrutura.
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